19.3.09

O grito do Ipiranga

Sempre achara que essa expressão tinha uma enorme força ilocutória, mesmo antes de lhe saber o significado. Era o som aberto e circular do ditongo, a lâmina afiada dos ii – i-pi-ran-ga. Enchiam-lhe o peito de força.

Andaria ela pelos catorze anos quando, numa manhã de domingo, afrontou a casa e disse: - Não vou, hoje não vou.
- Disparate, disse a mãe. Prepara-te lá, que já não é nada cedo.
- Não, hoje não vou.
A casa não caiu, nem o carmo nem a trindade, mas o pai passou o pulso lento pela testa e saiu dali sem argumentar, entristecido no seu fato domingueiro. Ora, quando tal acontecia com os silêncios do pai, significava que a coisa era, para ele, absolutamente inesperada.
Ao almoço, o som orquestral dos talheres era insuportável de tão grave e lento. Mas havia que resistir, havia que resistir. Já só faltava a sobremesa e poderia voltar para o quarto.
A mãe, então, levantou-se em direcção à cozinha, num pigarrear de quem ganha tempo para não falhar a frase. Ao chegar à porta, e ainda de costas como era seu hábito, murmurou:
- Más companhias, é o que é.
- Nem vou nunca mais – retorquiu serenamente.
- O que disseste? – perguntou o pai, agora fitando-a incrédulo.

Sem demora, aquilo tornou-se no escândalo que se fizera em casa do sr. Costa por causa da pequena do meio. Que nunca mais fora a mesma, diziam. Coitados daqueles pais, tão boas pessoas e amigos de fazer bem, uma coisa assim, a pequena arranjou umas ideias, aquilo foram as influências, que ao mais velho, e é rapaz, não se lhe virou o sentido. Todos os domingos lá está ele, a ajudar nas leituras. E que bem que lê. Até dá gosto ouvi-lo.

M.

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