26.5.09

(...)

*

* Louis Armstrong - What A Wonderful World

Até logo.

*

Agora estou aqui, do outro lado do espelho, diz M.
O que aqui se passou fui eu. Fui eu que passei. Em cada texto – meu ou não – era eu que falava. Os que não me pertenciam escolhi-os justamente porque, ao lê-los, sentia que tinham sido escritos para mim. Partilhei-os julgando que, da mesma forma, poderiam oferecer-se a quem passava. Em forma de hospitalidade.

(Ainda esperei que viesses, P. , - que, de alguma maneira, por algum sortilégio, soubesses de mim aqui, me interpelasses nesta minha outra forma de ser. Pergunto-me se não o saberias...
Não tem importância alguma, exceptuando o facto de eu ter decidido que seria justamente hoje o dia de fechar a porta. Tu entenderás, se aqui chegares. É portanto, também, de uma ausência que me despeço.)

O Ofício Inquieto, tal como foi imaginado, termina aqui.
A minha forma de ser é o silêncio, como em tempos aconteceu com Malina. Somos o verso e o reverso da mesma pessoa, é claro. A essência não se perde se o diálogo se fizer dentro de nós. Ambas o quisemos e ambas estamos agora mais ricas e mais livres. Eu estou. Eu também.

Um abraço a todos os viajantes deste reino de luz e sombra. Obrigada a quem teve a gentileza e a paciência de comentar; a quem veio conversar comigo a esta casa.
Havemos de reencontrar-nos por aí.

M.
* The Byrds - Turn Turn Turn

Ao longe, ao longe

*

Egon Schiele - Four Trees

Se nos prados daqui
eu nunca mais for vista nem achada,
direis que me perdi,
que ando enamorada,
por perdida me dei, e fui ganhada

São João da Cruz, in Cântico Espiritual, Fundacion Universitaria Española, 1981

*
Miles Davis - Blue in Green

Um certo azul

*

Bernhard Vogel - Dresden Früling

Se a palavra que vais dizer não é mais bela do que o silêncio, não a digas.
Parábola Sufi
* Lizz Wright - Chasing Strange

25.5.09

Tudo se destina ao silêncio

*

Construí a minha casa no mundo dos homens
E no entanto não ouço qualquer eco de cavalos e carroças.
Queres saber como pode isto acontecer?

Um espírito desprendido cria o silêncio à sua volta.
Colho crisântemos perto da sebe.
O ar da montanha é puro neste crepúsculo
E os pássaros, em bandos, voltam aos seus ninhos.
Tudo isto tem um sentido profundo,
Mas, assim que tento explicá-lo,
Ele desaparece por entre o silêncio.

T'ao Ch'ien (365-427), in O Elogio do Silêncio, Marc de Smedt, Sinais de Fogo, 2001
* Chopin - Nocturne in D flat major

23.5.09

Mitos?


1. A escrita torna-nos selvagens. Regressamos a uma selvajaria de antes da vida. E reconhecêmo-la sempre, é a das florestas, tão velha como o tempo. A do medo de tudo, distinta e inseparável da própria vida. Ficamos obstinados. Não podemos escrever sem a força do corpo. É preciso sermos mais fortes que nós para abordar a escrita, é preciso ser-se mais forte do que aquilo que se escreve.
2. O escrito chega como o vento, é nu, é tinta, é escrito, e passa como nada passa na vida, nada, a não ser ela, a vida.

Marguerite Duras, Escrever, Difel, 1994;
(Sem numeração no original)

22.5.09

Dizer para consigo

*


Ontem à noite, depois da sua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês de junho, esse mês que inaugura o Inverno. Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba. Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque. E depois comecei a escrever…

Marguerite Duras, Textos Secretos, Quetzal Editores, Lisboa, 1992
* Erik Satie - Gnossienne 1

21.5.09

Deve e Haver

Deviamos ter direito aos abraços que demos pela vida fora. Infelizmente não é sempre assim. Há quem tenha dado toda a ternura e tempo aos filhos e não tenha recebido de volta o que ofereceu de forma tão gratuita. Aos filhos e não só. A vida é injusta para muita gente.
Outras vezes, somos nós que não nos merecemos, de todo.
Obrigada A. e R., por estarem sempre aí.

Obrigada, vida.

M.

Instrução, educação e conhecimento

*


Espera-se que a escola eduque e a escola não o pode fazer porque não sabe e, mesmo sabendo, não tem os meios que seriam necessários. A educação é outra coisa! Fazia parte das obrigações da família, digamos assim, e de alguma forma também de uma sociedade educada que necessariamente produziria mais ou menos cidadãos educados.

José Saramago

Pede-se à escola que faça o que é do domínio da casa. Da família. Devia-se pedir-lhe que ensinasse, e bem, apenas. O resto já lá deveria estar quando as crianças chegassem ao portão de entrada. A escola é (foi sempre e será) um espaço formal. E quem não aprende, antes de chegar à escola, que há regras e disciplina próprias desse espaço, não terá, nunca, uma relação gratificante com ela, com os professores, com os seus agentes. Não terá memória de ter aprendido coisas que, só à escola devem ser pedidas. Que só ela pode dar. Independentemente de toda a facilidade com que hoje se tem acesso à informação. Estou a distinguir informação de conhecimento, de saber ou saberes. Falo da integração do que se lê, do que se escreve, do que se inventa, do que se discute, em cada um dos alunos. Falo de auto-sócio-construção. Diferente da que se faz (ou devia fazer) em casa.

M.
* Cat Stevens, Father and Son

Contra o esquecimento


UTILIDADE

Só as mãos que se estendem para a frente interessam
Só os olhos que vêem para além do que se vê,
só o que vai para o que vem depois,
só o sacrifício por uma realidade que ainda não existe,
só o amor por qualquer coisa que ainda não se vê e ainda,
nem nunca, será nossa
interessa.

Mario Dionísio, Poesia Incompleta, Europa-América, 1967

20.5.09

Que o sol pede música

Might as well give up that fight again
I know darn well he'll convince me that he's right again
When he sings that sorry song
I've just gotta tag along
With that ole devil called love

19.5.09

Anjos e Demónios

Tenho ouvido as opiniões mais díspares acerca deste filme. Em quase todas lá vem um conselho final: se já leste o livro, muito provavelmente vais desiludir-te. Se não leste não vais achar piada nenhuma à solução encontrada para os problemas da Humanidade. Se estás curiosa...
E não sei que faça. Provavelmente, vou apostar na companhia. Que, como eu, detesta comer pipocas durante uma sessão de cinema. Se sairmos, ao menos teremos (ainda) as pipocas para um belo passeio com lua em quarto minguante, ao som de Bach, festejando o dia do seu nascimento.

18.5.09

Requiem para um poeta

*

Mario Benedetti (1920 - 2009) – escritor uruguaio

Contista, novelista, poeta, ensaísta, dramaturgo e crítico, com mais de 70 títulos publicados, Benedetti faleceu ontem aos 88 anos. Foi galardoado com vários prémios literários, entre os quais o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana (1999), o Prémio Iberoamericano José Martí (2001) e o Prémio Internacional Menéndez Pelayo (2005).

A poesia, disse Benedetti, é um sótão de almas, uma clarabóia para a utopia e uma drenagem da vida que ensina a não temer a morte.

Táctica y estrategia

Mi táctica es
mirarte
aprender como sos
quererte como sos.

Mi táctica es
hablarte
y escucharte
construir con palabras
un puente indestructible.

Mi táctica es
quedarme en tu recuerdo
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
pero quedarme en vos.

Mi táctica es
ser franco
y saber que sos franca
y que no nos vendamos
simulacros
para que entre los dos
no haya telón
ni abismos.

Mi estrategia es
en cambio
más profunda y más
simple.

Mi estrategia es
que un día cualquiera
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
por fin me necesites.

*J.S. Bach - Paixão de S Mateus - BWV244- (cello:Yo-Yo Ma)

Rosa, rosae, rosae


Precisão

O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Clarice Lispector
Foto de Malina

17.5.09

Fotos que trazem versos (e vice-versa)

*

Going Places

Era uma casinfância (...) casabsoluta.
Herberto Helder

*Keith Jarrett - Somewhere over the rainbow

16.5.09

B&W para partilhar



Eu não conhecia e fiquei curiosa. Trouxe-me o sabor de algumas fotos antigas. De quando as máquinas eram assim:



15.5.09

Pára lá com isso!

Magritte - L'empire des lumières

É pela noite dentro que os demónios irrompem às risadas. Escarnecem das tuas mãos penitentes e teimosas com que lhes apontas os teus erros insubmissos. A culpa será sempre deles, de quem não conheces o rosto. Demónios, deuses, bruxos ou arlequins, a culpa nunca é tua (que o teu ofício é grandioso, claro...)

Parvoice! Não é por ironia que eles dobram o riso, quando assim lhes falas, na tua inquietação insane. Desiste. Os tempos não estão fáceis para os tolos.
Olha, faz grafittis. Escreve cartas à moda antiga. Escreve um livro de receitas. Manda telegramas.

Anda, não percas tempo. Vai mas é dormir.

M.

14.5.09

O tempo a haver

*


Seremos o que pudermos não perder
na fulminância da nossa passagem

Meu espaço____ teu abraço
como todo o amor cai sobre o rosto revelado!

M.
*John Coltrane; Duke Ellington - In a Sentimental Mood
Foto do Google

13.5.09

Há que pensar, pois...


Nunca sabemos o valor da água até que a fonte esteja seca.

Thomas Fuller, 1732

Tons matinais

Sometimes I believe in fate
but the chances we create
always seem to ring more true
you took a chance on loving me
I took a chance on loving you

(este blogue tem dias de uma meladice pegada. não, não é tristeza, nem melancolia, nada que se pareça. antes uma saturação indescritível da usura das palavras. minhas. eu que tenho de as pôr a uso tantas horas ao dia. não sou mulher-a-dias. sou mulher-a-palavras.)

M.

12.5.09

Das coisas simples

*

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo:
fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.

Mário Cesariny, Burlescas, Teóricas e Sentimentais, Editorial Presença, 1972
* Miles Davis - Summertime