8.5.09

De lugar algum


*
Lembro-me sobretudo que o frio não vinha de nenhum lugar, pelo que também não havia maneira de o deter. Fazia parte da atmosfera, da vida, porque a condição da existência era a frieza como a da noite é a obscuridade. Estava frio o chão, o tecto, o corrimão das escadas, estavam frias as paredes, estava frio o colchão, estavam frios os ferros da cama, estava gelada a borda da retrete e a torneira do lavatório, com frequência estavam geladas as carícias. Aquele frio de então é o mesmo de hoje, apesar do aquecimento, espreita nalguns dias de Inverno e faz saltar pelos ares o registo da memória. Quando se teve frio em criança, ter-se-á frio o resto da vida.

Juan José Millás, O Mundo, Ed. Planeta, 2009
* Chopin - Cello Sonata in G minor, for Cello and Piano, Op.65 - Largo (cello: J.Starker)

2 comentários:

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Este é um dos livros que quero ler oportunamente: Millas é um escritor que aprecio muito ...
Este excerto é forte!
abraço
_______ JRMARTo

Marta disse...

Este, está aqui :)
Amo.